A limitação é frequente em crianças que estão dentro do espectro autista, especialmente devido a mudanças sensoriais e comportamentais. Compreenda a conexão entre seletividade alimentar e autismo.
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A preferência alimentar se manifesta através da escolha por consumir certos alimentos específicos (normalmente, em quantidade limitada) e a resistência em experimentar alimentos distintos dos habituais. Crianças com essa restrição alimentar geralmente demonstram aversão a certos alimentos e mostram grande relutância em experimentar novos alimentos, o que pode ter sérias consequências para sua saúde.
Conforme Mayra Gaiato, psicoterapeuta, especialista em neurociência e desenvolvimento infantil e transtorno do espectro autista (TEA), é frequente que crianças com autismo apresentem preferência alimentar devido à presença dos sintomas dessa seletividade alimentar no espectro do autismo.
“Um dos aspectos abordados na seleção de alimentos é que as crianças que sofrem de seleção de alimentos apresentam um distúrbio de processamento sensorial, então experimentam uma modificação na forma como os estímulos sensoriais são interpretados no cérebro. E as crianças com autismo possuem essa modificação no tálamo, que atua como o filtro interno do cérebro para processar as informações provenientes do ambiente externo, todas elas relacionadas ao sistema sensorial – visão, olfato, tato, paladar. E todas essas áreas estão alteradas no autismo“, explica.
Isso ocasiona uma percepção dos estímulos que pode ser excessivamente intensa ( denominada hiperreatividade) ou reduzida ( hiporreatividade ). Consequentemente, indivíduos com uma percepção mais aguda enfrentam consideráveis dificuldades com certas texturas de alimentos, limitando-se a ingerir apenas determinados tipos – por exemplo, optando exclusivamente por alimentos macios, crocantes ou secos – ao passo que aqueles com uma percepção sensorial reduzida só conseguem apreciar alimentos com sabores extremamente pronunciados ou picantes.
“É bastante frequente nessas crianças [com hiporreatividade] morder sabão, ingerir produtos de limpeza que possuem sabor muito intenso, que proporcionam uma sensação que o cérebro delas identifica como necessária naquele momento em termos de sensibilidade. Portanto, há um distúrbio sensorial associado. Chamamos isso de modificações sensoriais, algo presente no autismo. Eles apresentam alterações mais significativas e, por isso, selecionam determinados alimentos de acordo com essa necessidade sensorial ou para evitar coisas que causam repulsa, ou para buscar sensações que estão procurando“, esclarece a especialista.
Graus e consequências da seletividade alimentar
Há variados níveis de seletividade alimentar (ou seja, a seleção pode ser mais rigorosa ou mais branda), e o que determina isso é o impacto que causa na pessoa. “Existem crianças, por exemplo, que não conseguem comer absolutamente nada, ou [consomem] apenas alimentos em forma de papinha ou líquidos batidos no liquidificador até os 8, 9, 10 anos de idade. Isso acarreta uma série de consequências negativas, como perda de dentes e complicações intestinais, pois o organismo foi projetado para receber os alimentos de outra forma nessa fase”, destaca Mayra.
De acordo com Paula Franssinete, especialista em seletividade alimentar e nutricionista infantil, no contexto do autismo, sem intervenção, a seletividade alimentar pode resultar em um cenário desafiador em que a criança rejeita categorias inteiras de alimentos, limitando-se a apenas dois tipos de alimentos, o que não é o bastante para atender às suas necessidades nutricionais.
“Essa situação pode levar a deficiências nutricionais e afetar o corpo negativamente, já que a ingestão de macro e micronutrientes está diretamente ligada à obtenção de energia, ao sistema imunológico, à proteção neurológica e ao correto funcionamento do organismo”, enfatiza.
Seletividade alimentar não é “frescura”
É crucial validar os sentimentos e sensações das crianças com seletividade alimentar. Mayra observa que frequentemente elas só conseguem tolerar dois ou três alimentos, pois o restante é rejeitado pelo cérebro.
“Não é algo que a criança está fazendo por preferência ou indulgência. Muitas vezes ela só consegue consumir batata frita, massa, frango empanado, e então os pais interpretam como um capricho da criança. No entanto, é o cérebro dela que não tolera outros alimentos, chegando até a rejeitá-los e causar vômitos se forem obrigadas a ingeri-los.”
Nesta circunstância específica, é crucial tentar compreender a perspectiva da criança. “Pense como seria para você receber algo na boca com uma textura ou sensação muito desagradável. Por exemplo, se a cada garfada do seu almoço houvesse um bolo de cabelo, você conseguiria comer? Se isso lhe causasse essa sensação, conseguiria engolir? Seria difícil“, conclui.
Por isso, é crucial buscar conhecimento e compreender a situação da criança, pois somente dessa forma é possível buscar a assistência necessária e lidar de forma mais eficaz esse problema.
Tratamento da seletividade alimentar com equipe multidisciplinar
O tratamento para lidar com a seletividade alimentar requer uma equipe multidisciplinar, podendo incluir especialistas como psicoterapeuta, fonoterapeuta, terapeuta ocupacional e dietista. Isso é crucial pois há aspectos comportamentais e sensoriais associados à dificuldade alimentar.
“A equipe multidisciplinar é crucial para o tratamento, pois dessa maneira podemos abordar várias necessidades da criança em conjunto, já que somente especialistas em seus respectivos campos possuem expertise e, coletivamente, podem alcançar resultados superiores e progresso“, diz a nutricionista
Estratégias para lidar com a seletividade alimentar
Confira algumas medidas que podem ajudar nesse processo:
- Comece aos poucos. O foco inicial não é fazer a criança comer alimentos novos, mas sim ajudá-la a tolerar o alimento, depois interagir com ele. Por isso, a recomendação é começar deixando o alimento próximo dela, apenas;
- Para a introdução, escolha um alimento que seja semelhante ao que a criança já tolera;
- Evite quantidades exageradas ou estimular o contato com vários alimentos novos ao mesmo tempo (isso vale para a introdução, mas dentro do que ela já consegue comer, é importante oferecer opções variadas sempre que possível);
- Mesmo sendo uma situação desafiadora, busque manter a calma e esperar o tempo de aceitação da criança em relação aos novos alimentos;
- De forma alguma force a criança a comer algo sem ela saber do que se trata ou aplique punições por ela não comer;
- Evite frases como “se você provar, te dou um presente” ou “como você não gosta se nunca provou?”;
- Não substitua as refeições por lanches, pois a criança funciona através de rotina e acostumá-la com esse tipo de substituição vai reforçar ainda mais a seletividade.